quarta-feira, 18 de maio de 2011

BRUXARIA TRADICIONAL - O nascimento da bruxaria (Carlo Ginzburg)

O diabo é intrínseco ao cristianismo, sua existência é incontestável para a época estudada. O historiador Carlo Ginzburg retoma a questão da continuidade, mostrando como prática e crença folclórica permaneceram encobertas, através de séculos, por um complexo cultural de componentes muito diversos. E descobre, em 1570, um verdadeiro culto de fertilidade – os benandanti –que se proclamavam defensores das colheitas e da fertilidade dos campos e travavam batalhas noturnas contra os strogoni – os bruxos.

Ginzburg mostra que esse culto foi transformado pela Inquisição em bruxaria tradicional; o ritual propiciatório vira Sabbat diabólico. Para Ginzburg a bruxaria era um produto de elementos das crenças e práticas folclóricas.
1437, a reunião das bruxas é levada a cabo em uma noite de sábado, liga-se então ao judaísmo completamente.


Carlo Ginzburg propõe a formação do estereotipo da Sabbat através de fusão de duas imagens distintas: uma é a da cultura erudita (juízes, inquisidores e demonólogos) que ligam ao Diabo; a segunda esta na cultura folclórica, homens e mulheres que entram em êxtase e adentram o mundo dos mortos para buscar a prosperidade para a coletividade. Esta segunda imagem é muito mais antiga que a primeira.


Robert Muchembled diz que o Sabbat é estranho aos atores camponeses destes dramas e que o satanismo é um produto direto da demonologia e da prática judiciária decorrente. E critica Ginzburg e todos que acreditam na existência do Sabbat e práticas orgiásticas imaginárias ou da existência de um ritual:


“reduzir as assembléias noturnas a certas estruturas conduziu Carlo Ginzburg a descrever a existência de práticas humanas universais, das quais faz parte o culto dos mortos, sem discernir o essencial: suas formas culturais específicas a um dado grupo em uma determinada época”


Realidade mítica ou eclesiástica, a questão demanda ainda muitas investigações que confirmem. Buscar a origem comum de uma tradição histórica contínua que se estende a todos os fatos englobados sob o nome de bruxaria, desde o período pré-histórico ou da Antiguidade Oriental é arriscar-se a deformações da realidade do período estudado. Os símbolos atravessam épocas, mas suas significações pelo imaginário da sociedade experimentam variações oriundas da própria originalidade e singularidade presente em cada cultura, em cada coletividade.


Não pretendemos negar o papel decisivo desempenhado pelos cultos acertas divindades do paganismo clássico na formação e no desenvolvimento da mentalidade mágica medieval.


***
Jean Vineti, um inquisidor em Carcassone, 1450, dizia que cavalgadas noturnas em companhia de Diana nada tinha a ver com os modernos heréticos. Nicholas Jacquerius, inquisidor na Bohemia em 1458, admite que as ilusões proclamadas pelo Canon Episcopi não existem de fato; nega que os antigos seguidores de Diana sejam os mesmos heréticos modernos a que se refere o cânone.


Em 1409, em Genebra, parece formar o estereotipo diabólico que tomaram corpo nos tratados dos inquisidores, quando alguns judeus e cristãos são acusados de praticarem, juntos, rituais contrários às duas crenças. É a nova forma de malefício que surge, a homenagem ao Diabo e a profanação dos sacramentos cristãos.


As primeiras notícias desse culto – servir ao Diabo – vêm por volta de 1428, na suíça, onde se constituem os primeiros registros de perseguição sistemática à bruxaria. Quando as comunidades aldeãs decidem, influenciados pelo bispo, que todos os indivíduos acusados de malefício por mais de duas pessoas vai à fogueira, - e é nas confissões arrancadas sob tortura que a imagem da bruxa voadora que nutri, mais tarde, a grande caça às bruxas: a imagem do Sabbat.


A partir de então se constroem teorias para reconstituição da “seita das bruxas” e seu modus operandi.


Começa uma intenção de ligar atividades consideradas heréticas e infiéis à bruxaria. É o caso do termo “sinagoga” (assembléia dos judeus) que nos registros dos tribunais designam a assembléia bruxesca. E aparece a primeira referencia ao termo Sabbat. Em


A bruxaria se dá mais ao meio rural, pelas antigas tradições e ausência da tutela ortodoxa; aumentando, assim, o domínio do “mal” e as ações dos “agentes de satã” – bruxaria.


O dualismo Deus-Demônio faz parte do próprio universo medieval, onde a sociedade se divide sempre em duas facções em constante peleja em todas as atividades cotidianas e em cada uma delas. Deste modo, a bruxaria encontra-se em franca rebelião contra a ortodoxia, o que a diferencia e afasta da feitiçaria e da magia, apesar de estas práticas viverem lado a lado.


Os malefícios são atividades secundárias na questão da bruxaria, um produto de uma falsa religião. É a noção de que bruxa recebe seus poderes de um pacto deliberado com o Diabo, que a distingue das outras atividades mágicas. Dessa maneira, o caráter essencial da bruxaria não é o dano que ela causa às outras pessoas, mas o seu caráter herético, o culto ao Demônio, que a transforma no maior dos pecados, pois, aflige toda a cristandade, que se vê ameaçada da impossibilidade de conclusão da obra do redentor e tenta purificar-se, purgando os pecadores através do fogo. Tendo lesado ou não a outras pessoas, a bruxa merece morrer, por sua traição para com Deus.


À vista do exposto, pode-se dizer que a bruxaria exerce no nível de um imaginário coletivo, uma função compensatória, influindo decisivamente no meio social pela institucionalização das reações de medo e pânico coletivo. No nível da “realidade” da bruxaria, daqueles que acreditam em bruxas, esta é um “ritual coletivo”, pois vivemos em um mundo onde os desejos adquirem vida própria, corporificam-se , transpondo a barreira do imaginário, para assumirem o seu devido lugar no cotidiano dos homens.


É nesta perspectiva que as acusações contra bruxas e bruxos de arruinar os indivíduos, estragar as colheitas e matar os animais ganham toda a sua importância. Mais do que a resposta emocional a um abuso de poder, as práticas mágicas preenchem as necessidades do imaginário da coletividade, a bruxaria e a feitiçaria, se por ao lado contradizem o estatuto social estabelecido, ao nível psicológico-coletivo também constituem um complemento necessário que fornece as possibilidades de intervenção e superação da realidade indesejada. O real e o fantástico não se solucionam por mútua exclusão, mas por uma relação ambivalente e integrada, que empresta a razão de ser desta totalidade coerente e funcional: o universo mental da coletividade. Aqui a imaginação conduz à realidade existente e à realidade imaginada; à realidade sofrida e à realidade desejada, até um ponto de intersecção – o cotidiano dos homens – onde toda a distinção torna-se equívoca e polivalente.




citação.
1-Dianus ou Diana era a deusa da lua e da caça, filha de Júpiter e de Latona, e irmã Gêmea de Apolo. Era muito ciosa de sua virgindade. Na mais famosa de suas aventuras, transformou em um cervo a caçador Acteão, que a viu nua durante o banho.


Fonte: NOGUEIRA, Carlos R. O nascimento da bruxaria: da identificação do inimigo à diabolização de seus agentes. 1ª ed. São Paulo. Imaginário, 1995.

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